99% das empresas oferecem o benefício saúde, que se tornou a segunda maior despesa das companhias depois da folha de pagamento
Promulgada em junho de 1998, a Lei dos Planos de Saúde acaba de completar 20 anos. Sua edição foi realizada com caráter de urgência para regulamentar um mercado que se expandia desenfreadamente. Ao longo das últimas duas décadas, um crescimento exponencial do setor de assistência privada no ambiente corporativo levou a uma situação insustentável, marcada pelo rombo no orçamento das companhias. Hoje, os empregadores do Brasil pagam 179 bilhões de reais anualmente em prêmio na saúde suplementar, enquanto o orçamento do SUS é de 130 bilhões ao ano. O desafio, agora, é encontrar uma solução sustentável para todos, sem descuidar da importância da regulamentação.
Até 1998, os planos de saúde eram oferecidos apenas por grandes empresas, que tinham flexibilidade para estruturá-los. Elas criavam suas próprias coberturas e eram livres para oferecer benefícios para agregados ou aposentados, como forma de gratificação pelo trabalho daquele colaborador. Era uma cultura muito paternalista e o plano de saúde era visto como um patrimônio da empresa.
Com a evolução dos custos, os avanços da medicina e o envelhecimento da população, os planos de saúde tomaram outra dimensão. E viu-se necessária a implementação da Lei 9.656. A atuação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), criada para regulamentar o setor, fez as operadoras ativas no mercado brasileiro caírem pela metade. Hoje, 700 empresas são encarregadas de oferecer planos de saúde a 47 milhões de pessoas. É um setor altamente relevante para a economia brasileira, que emprega 3,5 milhões de funcionários e representa 5% do PIB.
Segundo pesquisa do Ibope, o plano de saúde é o terceiro bem mais desejado pelo brasileiro. Na hora da escolha entre um emprego e outro, esse é um fator decisivo para 95% da população. Por conta disso, 99% das empresas oferecem o benefício, que se tornou a segunda maior despesa das companhias depois da folha de pagamento. Agora, a pergunta é até quando as empresas ainda vão conseguir arcar com esse custo. Para o mercado se sustentar, ele precisa passar por uma inovação. Vinte anos atrás, a gestão dos planos de saúde era um problema do RH. Hoje, essa discussão precisa envolver outros stakeholders, como a área financeira, o departamento de compras e até o CEO da empresa.
Essa transformação deverá se dar também no âmbito da questão regulatória, que precisa de mudanças para gerar mais eficiência, e do consumo consciente, que é um dos maiores desafios. Para se manter forte, o mercado de planos de saúde deve ser sustentável para os empregadores, viável para as operadoras, confortável para os prestadores de serviço e satisfatório para os beneficiários.
A Lei 9.656 buscou definir, entre outras, questões como:
- tipos de planos de saúde;
- cobertura mínima;
- plano referência;
- manutenção do benefício pós-emprego;
- limitação dos prazos de carência;
- reajuste dos contratos;
- proibição da suspensão e rescisão unilateral do contrato;
- ressarcimento do SUS;
- registro obrigatório das operadoras e seus produtos;
- acompanhamento da ANS no caso de solvência das operadoras.
Todas essas novas regras provocaram um saneamento no mercado. Apesar de focar na atuação das operadoras, a ANS também monitora, diretamente, os prestadores de serviços e empregadores. Desde 2011, a questão da garantia de acesso e da qualidade assistencial acompanham a pauta da agência. Hoje, há um esforço em creditar prestadores de serviços e exigir prazos de atendimento mais curtos. Fala-se também em sustentabilidade, por conta da questão de crescimento de custos. O objetivo oficial é, sempre, garantir uma assistência à saúde de maneira efetiva aos beneficiários.
Judicialização da Lei 9.656
Num contexto praticamente inédito, a Lei 9.656 foi aprovada do dia para a noite, dada a urgência da regulamentação de um mercado que crescia desenfreadamente. A aprovação de um projeto que talvez não estivesse maduro trouxe algumas consequências. Até hoje, são editadas medidas provisórias relacionadas a planos de saúde, que servem de complemento para a Lei de 1998. Algumas delas são bastante polêmicas e impactantes para o mercado:
- RN 195: regulamentou contratos coletivos;
- RN 279: determinou a manutenção dos planos a ex-empregados;
- RN 358: determinou o ressarcimento ao SUS;
- RN 363: determinou que a contra-atualização das operadoras, como a dos prestadores de serviço, deveria estar por escrito;
- RN 412: explicitou a forma como fazer a exclusão de beneficiários;
- RN 433: definiu mecanismos de regulação financeira.
Outra consequência da maneira improvisada em que se deu a edição da Lei dos Planos de Saúde foi um enfrentamento de suas ideias por parte do sistema judiciário.
Muitas das disposições se tornaram objeto de uma ação reparatória de constitucionalidade que só agora, em fevereiro de 2018, foi concluída. Depois de vinte anos de insegurança, reconheceu-se que era inconstitucional a irretroatividade da lei, por uma questão de direito adquirido e ato jurídico perfeito.
As próprias resoluções normativas, criadas para aperfeiçoar a Lei, acabam sendo alvo da judicialização. No caso da RN 433, bastou sua edição, em 26 de julho deste ano, para o Conselho Federal da Ordem entrar com uma ação direta e conseguir uma liminar de suspensão com a ministra Carmen Lúcia. Logo em seguida, o ministro Marco Aurélio voltou atrás e cancelou a deliberação que já tinha aprovado. Agora, deverá ocorrer uma nova audiência para rediscutir o tema.
Essa regulamentação é fundamental para a sustentabilidade do setor, mas houve uma reação muito dura no mercado, sobretudo por parte dos consumidores. Barreiras protetoras como isenções e limites não foram suficientes para sustentar a resolução.
Outro questionamento muito relevante, também julgado recentemente, é a questão do ressarcimento ao SUS. Embora existam prós e contras para cada lado da discussão, foi definido como constitucional pelo poder judiciário o artigo 32, que obriga as operadoras a restituir o valor de tratamentos gastos na rede pública com pacientes usuários de planos de saúde. O STF também bateu o martelo quanto à discussão sobre a necessidade de contribuição para empregadores que financiam integralmente os planos de seus funcionários. Ela, agora, é inconstitucional.
Quando se fala em judicialização da saúde, inúmeros princípios são invocados. Além do direito à informação e à dignidade humana, são levados em conta conceitos como a boa fé, a solidariedade intrageracional, a previsibilidade e a segurança. Mas isso não é tudo. É de extrema necessidade a formação de núcleos de apoio técnico ao judiciário, para auxiliá-lo a tomar decisões mais racionais na área da saúde.
O mercado deve ser sustentável para todos os participantes, e a regulamentação e o aperfeiçoamento da lei são essenciais para que isso aconteça. Mas o surgimento constante de normas regulamentadoras obriga as empresas a revisarem e atualizarem suas coberturas a cada dois anos. Isso acaba impactando o desenho das empresas e a forma como elas oferecem os planos de saúde, aumentando o risco da geração de passivos de benefícios pós-prêmio. A constante judicialização do tema também impacta diretamente o empregador, obrigando-o a reestruturar repetidas vezes este que é seu segundo maior custo depois da folha de pagamento.
O mercado já passa por um processo de amadurecimento, com a discussão aberta e integrada entre operadoras e empregadores, como aconteceu no I Fórum da Saúde da Mercer Marsh Benefícios em agosto deste ano, em São Paulo, que reuniu cerca de 300 lideranças do setor de saúde, RHs, advogados e consultores. Mas isso não basta. A voz dos empregadores não tem aparecido nas audiências públicas, apesar de a ANS tê-los convocado a participar. É urgente uma união dos empregadores também fora das companhias, para que possam defender seus interesses e contribuir para a formulação de um cenário que garanta a sustentabilidade na prestação do serviço privado de assistência à saúde.
Por Mariana Dias Lucon, diretora de produtos e consultoria da Mercer Marsh Benefícios