A dor invisível, a busca por justiça e os desafios do luto inconcluso na história brasileira.
Por Marcos Torati, psicólogo, professor e mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP
Com a corrida pelo Oscar do filme brasileiro Ainda Estou Aqui, que trata do luto da família Paiva pela perda de Rubens Beyrodt Paiva – sequestrado e morto no DOI-CODI em 1971 –, vem à tona a urgência de debater os lutos não resolvidos da Ditadura Militar.
Três desafios afligem as famílias que vivenciam um luto inconcluso. Primeiro, a ocultação do corpo e da verdade as obriga a escolher entre apostar na esperança do regresso ou presumir a morte para poder seguir em frente. Exige-se delas uma tarefa mais complexa do que no luto comum: em vez de processarem a perda a partir da morte constatada, aqui o dilema é “manter vivo” ou “matar” subjetivamente um ente cujo paradeiro é desconhecido. Assim, o sumiço do corpo prolonga a prática da tortura, agora infligida atemporalmente aos familiares.
Outro aspecto desse luto traumático é o preconceito. Como os discursos oficiais da Ditadura Civil-Militar estereotipavam os opositores do governo como “subversivos” e “rebeldes”, até hoje os familiares das vítimas sofrem discriminação em função desse legado narrativo. Sua busca por justiça continua sendo censurada e criticada como um ato de defesa em prol de “criminosos”. No último domingo, por exemplo, Marcelo Rubens Paiva, filho de Rubens e Eunice Paiva e autor do livro Ainda Estou Aqui, foi agredido durante um desfile de carnaval em São Paulo.
A Doutrina de Segurança Nacional disseminou a ideia de que as pessoas presas, mortas, torturadas, ocultadas e desaparecidas “mereceram” esse destino por ameaçarem a pátria. Com isso, a dor dos familiares foi invalidada, a justiça foi negada e o desejo de reparação foi obstado.
Por fim, a sensação de impunidade representa outro trauma no processo de elaboração do luto familiar. As autoridades, ao se eximirem da responsabilidade pelos crimes cometidos durante a Ditadura, perpetuam o ciclo de dor e violência. Assim, a resiliência interna das famílias torna-se a única arma contra a opressão e a injustiça.
Essas famílias tendem a se sentir desamparadas, pois carregam solitariamente o peso de seu próprio trauma. Por isso, a literatura, os filmes, as peças teatrais, os protestos e os movimentos de resistência, além de catárticos, proporcionam alívio à sensação de loucura familiar imposta pelas deslegitimações da Ditadura Civil-Militar.
Romper o pacto do medo
Nesse contexto, as famílias que rompem com o pacto do medo atestam publicamente sua sanidade e revelam a verdadeira ameaça à sociedade: o governo. Se um regime precisa ocultar fatos e corpos, atesta tacitamente sua própria criminalidade.
Enfrentar o silenciamento é essencial para construir uma ressignificação dos fatos e produzir uma memória coletiva sobre os eventos traumáticos e fantasmáticos. Dessa forma, o sofrimento deixa de ser um delírio pessoal e ganha um caráter de realidade, possibilitando novas inscrições psíquicas. A partir da experiência compartilhada, o processo de luto das famílias pode ser facilitado.
Na interação com outros interlocutores, o testemunho familiar perde o efeito da negação, da desqualificação e do desmentido da tortura e da morte, promovidos pelo sistema necropolítico da Ditadura. A justiça, enquanto vingança sublimada, requer agressividade, e a capacidade de resistir às perversões do Estado evidencia a força interna das famílias enlutadas.
Com a validação social e jurídica dos depoimentos, os familiares aliviam o fardo de sustentar sozinhos a memória do desaparecido, que passa a ser reconhecido no domínio público. Afinal, a história de vida de um desaparecido é um capítulo inacabado: possui começo e meio, mas carece dos ritos, símbolos e fatos que confirmam seu fim. É um nome sem corpo, um morto sem a celebração final da passagem pelo mundo – elemento fundamental para a elaboração saudável do luto.
Em que medida a busca por respostas influencia o equilíbrio emocional dos familiares?
Apesar de ser emocionalmente torturante, o sofrimento gerado pela busca por respostas pode ser o elemento propulsor do trabalho de luto. Quando a família mobiliza todos os seus esforços para solucionar o enigma do desaparecimento, ela pode pacificar os sentimentos de culpa decorrentes da inércia e da resignação, muitas vezes resultantes do medo de represálias.
A investigação empírica do desaparecimento permite à família distinguir fantasia e realidade, confronto e omissão, verdade e mentira. Ao atravessar o rochedo das falácias, ocultações e omissões, passando pelo instante de ver, compreender e concluir dedutivamente, o status de desaparecido pode ser alterado para morto. Presumir a morte, por mais difícil que seja, possibilita preservar a memória em detrimento da esperança do retorno.
Assim, a figura desaparecida pode ser retirada desse limbo subjetivo, desse estado de morto-vivo, ausente-presente, um ente fora das coordenadas do espaço-tempo, cuja presença se perpetua porque sua família foi privada do direito de simbolizá-lo no reino dos mortos.
Portanto, a busca por respostas viabiliza a ritualização do luto, um direito subtraído pela ocultação do cadáver. Nesse caso, o tempo não cura, a verdade não aparece e a justiça falha e tarda. Diante disso, os familiares são convocados a agir ativamente para concluir o luto do desaparecido, criando artificialmente, a partir de seus próprios esforços, os ritos de passagem necessários para admitir a perda.
Em última análise, ao testar a realidade, o psiquismo pode criar uma representação simbólica para a morte a partir da noção do corpo sem vida. Contudo, o conceito de “desaparecimento” é irrepresentável para a mente – um vazio de sentido tão inominável quanto o conceito de “nada”. Ainda assim, são os atos de amor pelos desaparecidos que sustentam a silhueta humana dos corpos que a Ditadura Militar tentou apagar.