Por Dr. André Fusco, médico-psicanalista e consultor empresarial em saúde mental.
A nova NR-1, que estabelece os fundamentos do Programa de Gerenciamento de Riscos (PGR), trouxe uma mudança significativa: a partir de maio, todas as empresas deverão gerenciar os riscos psicossociais no ambiente de trabalho. Isso, sem dúvida, representa um avanço. Mas será que essa medida ataca a raiz do problema?
A atualização da NR-1 marca um passo importante na prevenção dos principais causadores de afastamentos laborais. No entanto, é preciso ir além da simples formalização dessa exigência. O grande risco é que os profissionais de RH e de saúde do trabalho se concentrem em avaliações psicofisiológicas – baseadas em indicadores como número de afastamentos ou em queixas isoladas – sem identificar o verdadeiro desvio de propósito que adoece nossa cadeia produtiva. Temos que ir além do estudo sobre os doentes e incluir a organização do trabalho.
A saúde mental não pode ser avaliada isoladamente do contexto organizacional. O trabalhador doente não é o problema em si, mas o sintoma de uma estrutura de trabalho que precisa ser revista. Grande parte das doenças mentais associadas ao trabalho está diretamente ligada à forma como somos remunerados, incentivados e reconhecidos.
Mesmo assim, a responsabilização da vítima ainda é um fenômeno muito presente.
Ao longo dos anos, vimos exemplos claros dessa dinâmica. No caso da LER/DORT, por exemplo, a culpa inicialmente recaía sobre o indivíduo, até que a inclusão dessa condição no rol de doenças reconhecidas obrigou as empresas a adotarem medidas concretas – inicialmente com a implementação da ginástica laboral (ainda focando nos doentes) e, depois, com a implementação da ergonomia osteomuscular, que trouxe, por exemplo, o uso de cadeiras ergonômicas. Hoje, com o burnout e outros transtornos mentais, parece que estamos vivendo a “fase da ginástica laboral” na saúde mental: adotamos práticas como mindfulness, yoga e higiene do sono, que, embora importantes, são paliativas se não atacarmos a raiz do problema.
A verdadeira inovação reside na aplicação dos princípios da Ergonomia Mental. Essa abordagem propõe ajustar regras e reestruturar processos para reduzir o estresse e melhorar a produtividade, sem transferir a responsabilidade do adoecimento mental para o trabalhador. Assim como a NR-17 (Ergonomia Física) revolucionou os ambientes de escritório após anos de pressão normativa, é imperativo que revisemos os processos, sistemas e práticas de Recursos Humanos – desde a avaliação até a contratação – para realmente transformar o ambiente de trabalho.
Não podemos nos limitar a indicadores como o número de afastamentos. Em 2023, os transtornos de saúde mental aumentaram 38%, segundo dados do Ministério da Previdência Social. Contudo, essa estatística não revela a complexidade do problema: o trabalhador adoecido é o resultado de um modelo de organização do trabalho que, desde as raízes fordistas e tayloristas até os dias atuais, fomenta uma competição exacerbada, pressão constante e falta de reconhecimento. Se reorganizássemos o trabalho de forma mais humana e sustentável, veríamos resultados mais consistentes e produtivos a longo prazo.
É fundamental questionar: o que seria um trabalho saudável? Um ambiente onde o indivíduo sinta que seu trabalho tem valor além do lucro, onde sua identidade profissional se fortaleça por meio de um propósito – sentindo que exerce um impacto real e positivo na sociedade, destacando-se pela singularidade de suas contribuições e sendo reconhecido por suas entregas. Se continuarmos a trabalhar apenas para pagar contas e evitar a exclusão social, estaremos fadados a repetir o ciclo do adoecimento mental. Quem pode fazer esse tipo de avaliação é a Ergonomia Mental.
Para as empresas, não basta cumprir uma norma ou evitar multas; é necessário repensar profundamente a organização do trabalho de maneira integral. Isso envolve revisar modelos de avaliação e metas, cultura organizacional, políticas e produtos de RH, visando a construção de jornadas mais sustentáveis.
A nova NR-1 é, sem dúvida, um avanço e traz uma oportunidade para investir de forma mais robusta em saúde mental organizacional. Contudo, sua eficácia dependerá da disposição das organizações em promover mudanças reais e estruturais.