O novo mundo digital do recrutamento: Direitos, responsabilidades e a essência da seleção justa
Desde que o mundo virtual tomou conta das relações de trabalho, fomentado pela necessidade decorrente do período pandêmico, muito se discute acerca dos cuidados de empresas e gestores na realização de processos seletivos e entrevistas.
A limitação na coleta de dados, as perguntas condizentes com a atividade a ser desempenhada e uma atuação cada vez mais impessoal, focada na qualificação e aptidão para a vaga a ser preenchida, tornaram-se premissas indispensáveis do processo de seleção, motivando, inclusive, a inserção da orientação em programas de Compliance Trabalhista e uma ampla divulgação a fim de orientar profissionais que ficam à frente de tais trabalhos nas organizações.
Não raro, ao acompanharmos inúmeros programas de implantação de proteção de dados em empresas de todos os mercados e regiões do Brasil deparamo-nos com a surpresa de gestores e diretores ao esclarecermos a limitação quanto à coleta de dados sobre a vida pessoal de candidatos, fruto da nova relação entre pessoas, intermediada pelo mundo virtual.
Trazemos então essa realidade inegável para os momentos que precedem a contratação do colaborador. Não se admite, pois, que preenchida a qualificação para o cargo aplicado pelo candidato e, assim, aprovado, lhe seja dirigida qualquer recusa em razão de seu corte de cabelo, suas tatuagens ou qualquer outra característica, sobretudo quando a mesma não causa qualquer nocividade ou situação semelhante.
Recentemente, acompanhamos a decisão da 59ª Vara do Trabalho da Capital, que condenou uma empresa ao pagamento de danos morais pré-contratuais porque recusou trabalhadora anteriormente aprovada em processo seletivo por videochamada, por possuir tatuagens, desenhos na pele, que não tinham sido observados na entrevista por vídeo inicial.
Como foi ferido o direito de personalidade da trabalhadora, impõe-se a condenação de sua ex-futura-empregadora aos danos morais, fixados no caso concreto em R$ 7 mil.
O que levamos de lição para as nossas empresas a partir dessa condenação em um caso concreto? Que embora a internet seja o pano de fundo inicial de uma série de relações, permanece plenamente vigente o direito fundamental do empregado em ver-se avaliado apenas tecnicamente e não sofrer qualquer tipo de preconceito que o leve à perda da vaga, obviamente desde que apto ao trabalho a ser desenvolvido.
Além disso, é preciso entender que processos e informações não são mais importantes que pessoas e do que os direitos que lhes cabem antes mesmo de se tornarem empregadas nessa ou noutra companhia.
Ostentar desenhos no corpo não pode ser um empecilho tal que obste o acesso do profissional ao trabalho, reconhecidamente como direito social. Agem errado e sem qualquer respaldo em políticas internas sustentáveis e atuais ou em programas de compliance efetivos organizações que admitem profissionais e os demitem por qualquer motivo (diga-se aqui “sem motivo”) como caraterísticas físicas, histórico de afastamentos que não impedem a aptidão atual para o trabalho, ou, a pré-existência de doenças, ainda que graves.
Privar esses profissionais com lastro em tais características não nocivas, que não destoam em absolutamente nada do que se espera de um bom e comprometido profissional, significa disseminar e contribuir ostensivamente para ambientes preconceituosos, conflitivos e tóxicos que admitem a discriminação como prática em seus processos, o que não se coaduna, sequer minimamente, com o que se espera de organizações sérias, comprometidas e competitivas nos dias de hoje.
Gestores devem ser orientados sobre a responsabilidade das empresas nesses atos desde o processo de seleção de colaboradores. E o advogado trabalhista é o profissional adequado para a orientação e formalização de tais processos, não só porque conhece amplamente a legislação, mas porque tem em mente as premissas do direito do trabalho e o viés de natureza constitucional sob a perspectiva do trabalhador.
Daniela Beteto é advogada especializada em Direito do Trabalho e Privacidade de Dados nas relações de Trabalho. É Coordenadora do Departamento Consultivo Trabalhista da MABE Advogados Associados. Atua na privacidade de dados, organização e gestão empresarial com foco em assessoria consultiva para empresas.