Análise Jurídica e Política da Manutenção da Desoneração da Folha de Salários e o Impacto da Medida Provisória nº 1.202/2023
José Luis Ribeiro Brazuna, Advogado tributarista em São Paulo e Brasília. Professor e Sócio-fundador do Bratax – Brazuna, Ruschmann e Soriano Sociedade de Advogados
O noticiário tem veiculado diferentes informações, versões e especulações a respeito da manutenção ou não, neste ano de 2024 e até 2027, da desoneração da folha de salários, tendo em vista a edição da Medida Provisória nº 1.202, no último 29 de dezembro.
Criada em 2011, pela Medida Provisória nº 540, convertida na Lei nº 12.546, a desoneração corresponde à substituição, para alguns setores com intensiva contratação de mão-de-obra, do pagamento da pesada contribuição patronal sobre a folha, pelo recolhimento da contribuição previdenciária sobre receita bruta (CPRB), cobrada mediante alíquotas de 1,5% a 4,5%, a depender da atividade econômica da empresa.
Com base na recente Medida Provisória, o Poder Executivo pretende anular os efeitos da Lei nº 14.784/2023, publicada um dia antes e que prorrogava a CPRB até 31 de dezembro de 2027.
Essa prorrogação havia sido vetada pelo Presidente da República. No entanto, o veto foi posteriormente derrubado pelo Congresso Nacional, conforme procedimento para tanto previsto na Constituição Federal.
Ao afastar a CPRB, a MP nº 1.202/2023 pretende a volta do pagamento da contribuição patronal sobre a folha, estabelecendo, para alguns poucos setores, um regime de alíquotas ligeiramente menores, que serão majoradas anualmente até 2027. Essas alíquotas, porém, somente se aplicam sobre o valor de um salário mínimo por segurado. Ultrapassado esse limite, o salário de contribuição será tributado pela alíquota cheia.
Salvo a hipótese de algum exótico acerto político que leve o Congresso Nacional a converter em lei uma medida provisória que contraria a derrubada dos vetos à Lei nº 14.784/2023, quer nos parecer que a MP nº 1.202 não sobreviverá.
Cogita-se, aliás, que o Presidente do Congresso Nacional, Senador Rodrigo Pacheco, simplesmente devolverá a MP ao Poder Executivo, rejeitando-a e tornando-a sem efeitos sumariamente, assim como já se fez em episódios anteriores da nossa história legislativa, ocorridos nos governos José Sarney, Lula II, Dilma II e Bolsonaro.
O expediente utilizado pela Medida Provisória nº 1.202/2023 representa grave ofensa aos princípios da segurança jurídica e da separação de poderes, conforme o Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade de declarar, no mandato presidencial anterior, ao decidir a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7.232-DF.
Utilizando-se esse julgamento como parâmetro, é possível afirmar que a nova MP: (i) esvazia a finalidade da norma aprovada pelo Congresso Nacional; (ii) burla a livre atuação do Parlamento que derrubou os vetos; e (iii) distorce o uso do instrumento extraordinário de criação de normas (medida provisória), para reestabelecer a vontade do Poder Executivo sobre a qual deliberou o Poder Legislativo.
Imaginando-se, porém, que a Corte Constitucional não intervenha imediatamente (apesar de já ter sido provocada a tanto pelo Partido Novo, que acaba de ajuizar a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7.587-DF) ou que o Congresso chegue a um entendimento com o Executivo e acate a MP, ainda assim nos parece que o retorno da contribuição sobre a folha seria inválido.
E isto porque a CPRB teve a sua inserção no sistema tributário brasileiro constitucionalizada, não podendo ser livremente eliminada pelo legislador ordinário, tampouco pelo Poder Executivo.
Na exposição de motivos da própria MP nº 1.202, o Ministro Fernando Haddad lembrou que, em 2019, com a promulgação da Emenda Constitucional nº 103, todos os elementos da obrigação tributária relativos à CPRB foram “petrificados”.
E isto se deu porque a referida Emenda, após eliminar a regra constitucional que autorizava a instituição de contribuições previdenciárias substitutivas à oneração da folha, decidiu, no seu artigo 30, por preservar as contribuições sobre receita bruta existentes até então. Ou seja, o Constituinte determinou que a CPRB fosse preservada.
Ainda que a Lei nº 12.546/2011, então vigente, previsse a cobrança da contribuição até 31 de dezembro de 2020, o legislador ordinário tomou o cuidado de prorrogar esse prazo reiteradamente, atendendo ao comando constitucional que assegurou a manutenção do tributo substitutivo.
Ao que nos parece, portanto, a própria Lei nº 14.784/2023, ao agora insistir na extensão da CPRB até 31 de dezembro de 2027, assim o faz não por um capricho do Congresso Nacional, mas porque assim está determinado na Emenda Constitucional nº 103/2019.
Afastar a CPRB e retornar à tributação da folha, nos moldes pretendidos pela Medida Provisória nº 1.202/2023, representaria um retrocesso social na política de desoneração do emprego e dos salários, em contrariedade aos objetivos previstos nos artigos 1º, inc. IV, e 170, da Constituição Federal.
As novas regras trazidas pela Medida Provisória beneficiam, com alíquotas mais brandas, somente a remuneração de até um salário mínimo, o que poderá incentivar empresas a reduzirem o custo da sua folha, comprimindo a remuneração dos seus funcionários, para consequentemente aliviarem a sua carga fiscal.
Um claro incentivo, portanto, contrário à valorização dos salários e do emprego.
Já a CPRB caminha na direção contrária, estimulando o empregador a pagar melhores salários e aumentar a sua base de funcionários, sem ser com isso penalizado com o pagamento de uma contribuição sobre a sua folha.
Faz sentido compreender, portanto, porque essa política foi petrificada pela Emenda Constitucional nº 103/2019 e, independentemente do que vier a ocorrer com a Medida Provisória nº 1.202/2023, deve ser vista como imutável e permanente pelos Tribunais, caso o tema acabe demandando a futura intervenção do Poder Judiciário.
Aliás, o retrocesso proposto pela MP atenta contra a regra inserida pela Reforma Tributária aprovada em 2023, no artigo 145, § 4º da Constituição, segundo a qual alterações da legislação tributária buscarão atenuar efeitos regressivos, o que é exatamente o inverso daquilo que a reoneração do salário passará a provocar