Neste momento, está em análise nas cortes superiores de vários países, incluindo o Brasil, o reconhecimento do domicílio digital o que, na prática, significa estender a proteção constitucional dada a residências e escritórios também aos aparelhos eletrônicos.
Quando o domicílio digital se torna protegido, o que se protege é a privacidade das pessoas, afinal, hoje em dia são nos computadores e smartphones que se desenrolam o mais íntimo da vida pessoal. É nesta linha que caminha a tese, atualmente em discussão no Supremo, por meio do Recurso Extraordinário ARE 1042075. Aparelhos, como esse que possivelmente você está usando para ler este artigo, trazem aspectos muito mais íntimos e delicados do que, provavelmente, os existentes em seu lar.
A questão analisada pelo Supremo terá repercussão geral e trata do acesso a dados pessoais, agenda telefônica e outros registros encontrados em celulares confiscados em operação policial, mas sob o qual não havia autorização judicial para utilizá-los. O recurso contesta a validade das informações lá encontradas como prova, baseando-se na proteção constitucional à informação telefônica; porém é mais profundo o que precisa ser entendido e protegido.
O problema é que a proteção atual, regulada em lei, refere-se a uma época na qual existia apenas a telefonia e os registros de ligação, não abrangendo dados. Entretanto, hoje, a relação dos brasileiros com os seus aparelhos é totalmente diferente. Além de chamadas, armazena fotos, muitas delas íntimas, contratos, senhas, extratos bancários e até histórico de batimentos cardíacos. O celular sabe por onde seus usuários transitam e a frequência e permanência nos locais. Registra os sites mais visitados, as pessoas com quem se relacionam e a regularidade desses contatos.
A proteção aos dados pessoais e ao domicílio não deve ser encarada como um meio de isenção de responsabilidade legal por atos ilícitos, mas o acesso a tantas informações sobre um cidadão precisa ser, em qualquer hipótese, preservado. Com esta mudança, o requerimento judicial será necessário para ter acesso aos aparelhos eletrônicos, da mesma forma que fariam para investigar uma residência ou escritório.
As consequências de reconhecer que um equipamento é parte de um domicílio vai permitir que o proprietário dê, ou não, acesso ao seu conteúdo com maior proteção e amparo legal. Com isso, mesmo diante de um pedido judicial, provavelmente poderá limitar, dado o objetivo da averiguação, quais partes permite acesso; bem como o tempo de acesso. Dessa maneira, caso o equipamento seja encontrado e tomado durante uma investigação, o indivíduo não será vítima de um acesso irrestrito e nem terá questões pessoais expostas de maneira desnecessária.
Porém o efeito não pararia por aí. Qualquer invasão não aprovada, além da proteção de outras leis como o marco regulatório da internet e a LGPD, teria agora uma cobertura própria de um direito fundamental, sinalizando ainda mais a importância e necessidade de proteger os dados e a vida digital. Este é um passo importante, mas poderá não ser o suficiente em virtude de novos avanços.
Nos preocupamos com a quantidade de dados que os celulares carregam, sem observar a proximidade e o fortalecimento da internet das coisas e suas consequências. Afinal, ela possibilitará, por meio de tecnologias simples, que terceiros saibam quais bens as pessoas possuem em sua casa e com que frequência são usados, por exemplo.
Talvez, com o Supremo reconhecendo o domicílio digital, seja possível buscar meios para ampliar o conceito e proteger a privacidade. Deter o avanço tecnológico é impossível, mas conter os efeitos negativos deste avanço é necessário. Mediante o reconhecimento do domicílio digital, temos um provável primeiro passo.
Até o momento o relator, Ministro Alexandre de Moraes, posiciona-se contrário a tese do domicílio digital, a partir do seguinte voto: “É lícita a prova obtida pela autoridade policial, sem autorização judicial, mediante acesso a registro telefônico ou agenda de contatos de celular apreendido ato contínuo no local do crime atribuído ao acusado, não configurando esse acesso ofensa ao sigilo das comunicações, à intimidade ou à privacidade do indivíduo (CF, art. 5º, incisos X e XII)”.
A colocação de Moraes foi confrontada pelos votos dos Ministros Gilmar Mendes e Edson Fachin, que defendem a seguinte tese: “O acesso a registro telefônico, agenda de contatos e demais dados contidos em aparelhos celulares apreendidos no local do crime, atribuído ao acusado, depende de prévia decisão judicial que justifique, com base em elementos concretos, a necessidade e a adequação da medida e delimite a sua abrangência à luz dos direitos fundamentais à intimidade, à privacidade e ao sigilo das comunicações e dados dos indivíduos (CF, art. 5º, X e XX)”.
Em novembro o Ministro Alexandre de Moraes pediu vistas. Por enquanto, resta a dúvida se será possível dar um próximo passo para maior proteção aos bens do indivíduo, aos dados e às vidas privadas.