Para a discussão sobre como cada setor da economia pode colaborar para reduzir a inflação dos alimentos é preciso cautela e objetividade.
Thomas Pillet – CEO da UP Brasil, uma das associadas da ABBT.
Todos deveriam estar engajados na batalha para conter a alta de preços dos alimentos no Brasil, sem procurar por bodes expiatórios, na busca de caminhos possíveis e mais efetivos para baixar o custo desses produtos.
Um debate sem apresentação de dados concretos, infelizmente, não levará à diminuição do índice de inflação dos alimentos que, em 2024, foi de 8,23% para o consumidor e de 9,42% ao produtor, valores bem acima da inflação geral, medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), que fechou em 4,83%. Aliás, desde 2007 o preço dos alimentos sobe mais que os demais e acumula 129% de alta, frente a 77,40% do IPCA.
É bastante compreensível que o tema gere preocupação, porque as despesas com alimentação representam uma parte significativa do orçamento dos brasileiros.
Em famílias de baixa renda (aquelas que ganham até dois salários mínimos) gastos com alimentação equivalem a 22%, enquanto famílias de renda média e alta (que ganham mais de 25 salários mínimos) destinam apenas 7,6% do seu orçamento para alimentação, de acordo com a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2017-2018, do IBGE.
Ano que vem, celebraremos os 50 anos da criação do PAT – Programa de Alimentação do Trabalhador, que visa oferecer alimentação de melhor qualidade para melhorar a saúde e nutrição tanto do profissional, quanto dos demais membros de sua família, além de promover a produtividade e o bem-estar no ambiente de trabalho.
Hoje, há mais de 400 empresas com licença PAT operando no país; o tamanho do mercado de benefícios corporativos é de 150 bilhões de reais e inclui os vales alimentação, combustível, refeição, transporte, além de assistência médica e odontológica. Vouchers de alimentação e refeição representam dois terços disso.
Propostas sem respaldo
Um exemplo de ideia descolada da realidade aconteceu em novembro do ano passado, quando a ABRAS (Associação Brasileira de Supermercados) sugeriu que os Vales Alimentação e Refeição – entenda-se a circulação do dinheiro que as empresas destinam para esse tipo de benefício – deveria ser gerenciada pelo governo com a ajuda da Caixa Econômica e da Receita Federal.
O novo modelo seria chamado de PAT e-social e o benefício pago diretamente nas contas salário dos empregados.
O equivocado argumento usado supunha que a medida estimularia a competição e geraria economia, porque os “preços e práticas abusivas das operadoras privadas” seriam ajustados, reduzindo a atual complexidade e os altos custos do sistema. A alegação é de que essa mudança geraria 10 bilhões de reais de recursos.
Não sei de onde surgiu este cálculo. Dizer que as operadoras PAT custam 10 bilhões de reais significa afirmar que nossa rentabilidade seria de 10%, o que é uma fantasia!
Há setores, como o de serviços de delivery, em que se verificam taxas que considero abusivas. O iFood, por exemplo, chega a cobrar 23% de comissão, a depender do plano pelo qual o parceiro opta. São exceções do mercado, não o recomendado.
Já em um setor regulado, como o de benefícios corporativos, isso não acontece. As taxas praticadas estão entre 3,5% e 4,5%, segundo um estudo feito pela Associação Brasileira das Empresas de Benefícios ao Trabalhador (ABBT) em conjunto com a Tendências Consultoria Econômica.
Vamos aos dados reais?
O valor do mercado do setor supermercadista no Brasil foi estimado em 1,1 trilhão de reais, em 2024, uma fatia de 56% das vendas totais de alimentos.
Assim, os vouchers de alimentação emitidos em moeda pré-paga (os já citados 100 bilhões de reais anuais) correspondem a 9,09% do mercado supermercadista.
Ainda que o cálculo da economia de 10 bilhões de reais para o setor supermercadista fosse verossímil, caso as empresas privadas de benefícios sumissem do mercado, diante do faturamento deste setor, a suposta economia representaria apenas 0,9% de todo o dinheiro que circula por esses estabelecimentos.
E o cálculo feito com as taxas reais joga a conta feita pela ABRAS ainda mais para baixo – 0,35%. Quanto “impacto”! É difícil imaginar como a extinção das empresas de benefícios resolveria a questão da inflação de alimentos.
Um outro sério equívoco sobre este assunto é dizer que o trabalhador “perde” dinheiro ao vender seu crédito, por conta de um deságio de 20% ou mais. Atenção: a compra de vales alimentação, refeição e transporte é ilegal! E quem usa o benefício na rede credenciada aproveita 100% do valor ao qual tem direito, ou seja, nunca é prejudicado.
Ora, trocar o voucher por dinheiro em espécie para ser usado em outras situações, como compra de gás, bebida alcóolica, apostas em loterias etc. nunca foi o objetivo do programa! Essa política pública nasceu para dar acesso à alimentação adequada por meio dos benefícios. É como um salvo-conduto para haver o mínimo de qualidade à mesa de refeição.
Esse propósito é tão sério que as operadoras PAT têm a obrigação de garantir sistemicamente que o uso dos cartões não seja desvirtuado. O modelo de negócio dessas empresas com sua rede credenciada de estabelecimentos comerciais funciona por meio da cobrança de uma taxa administrativa, o MDR, negociada com cada estabelecimento.
Está incluso nesse acordo a verificação dos locais onde os vouchers de alimentação e refeição são utilizados: se possuem alvará de funcionamento, licença sanitária em dia, vendem alimentos e não são operações de fachada. A ABBT contabiliza 10 mil visitas de fiscalização por ano, que resultam em 3,5 mil descredenciamentos por desrespeito às normas.
Assim, as operadoras PAT não são equivalentes a empresas de pagamento ou emissoras de cartões de crédito. Detectar fraudes faz parte do nosso cotidiano, é como conceder um selo de qualidade. “Obviamente, essa estrutura toda tem um custo para o negócio. Mas fica muito longe dos 10% chutados pela ABRAS”, como declarou Lúcio Capelletto, diretor-presidente da ABBT.
Vale lembrar que a concessão de benefícios corporativos impacta positivamente no desenvolvimento social – reduz feminicídio, melhora a saúde familiar e é uma segurança para os departamentos de RH.
Mais recentemente, o Ministério da Fazenda tem citado a portabilidade das carteiras como uma solução. No entanto, minha posição como especialista é de que a interoperabilidade é um caminho melhor, porque endereça a dor sem os efeitos colaterais da portabilidade.
Tentamos resolver a questão da melhoria do acesso dos usuários à rede credenciada. O trabalhador não deveria ter receio de um cartão de benefícios não passar na maquininha de um estabelecimento que comercializa alimentos.
Portabilidade X Interoperabilidade
A portabilidade funciona como a da linha telefônica. O cliente trocaria a operadora A pela B por critérios que teriam pouca influência sobre o preço final ao consumidor. Afinal, o trabalhador não sabe quanto de taxa cada operadora acordou com cada integrante da rede credenciada.
O mais comum, nesse caso, seria optar por quem fizesse mais propaganda, o que pode incentivar a concentração de mercado, como já acontece com as plataformas de delivery, e acabar com as operadoras de atuação regional, que possuem taxas menos agressivas e menor poder de divulgação . Ou optar por cashbacks (vetados às operadoras do PAT), outros serviços etc. No limite, essa ideia poderia atrair até atores sem condição financeira de bancar a vantagem prometida. E se de repente, ao tentar utilizar o benefício, o trabalhador descobrisse que a operadora dele faliu. Que tal?
Já a interoperabilidade – na qual vários atores estão trabalhando e deve ser regulamentada este ano – foi pensada como um meio de evitar que o trabalhador fosse prejudicado por uma rede de aceitação menor. Nesse modelo, o trabalhador teria acesso a toda rede de estabelecimentos, pois todas as redes credenciadas dos operadores de PAT estariam sobre uma única bandeira – a do “selo PAT”.
Ou seja, a interoperabilidade permite que todos os cartões PAT sejam aceitos nos estabelecimentos (restaurantes, supermercados) credenciados no Programa. Em outras palavras, é a opção que resolve a dor sem abrir a possibilidade de aumentar custos de marketing para convencer o usuário ou até incentivar comportamentos ilegais (cashbacks) ou lesivos ao trabalhador.
Com a interoperabilidade e a integração das operadoras do PAT haverá ainda otimização de processos e melhora da experiência do usuário. É a garantia de uma rede de estabelecimentos mais completa e toda a cadeia de negócio seguirá preservada e enxugando custos.
Outros fatores a serem considerados
Além de tudo que expus, devem ainda ser levados em conta para a definição de ações que visem conter a inflação de alimentos: a crise climática, que afeta a produtividade no campo e as safras colhidas; a variação da taxa de câmbio, afinal, em 2024 o dólar acumulou uma alta de 27,35% em relação ao real, o que incentiva a exportação e deixa o mercado interno com menos oferta de produtos; custo de insumos agrícolas; impostos e isenções fiscais.
É um quebra-cabeça de muitas peças. Para que a discussão sobre como cada setor da economia pode colaborar para reduzir a inflação dos alimentos é preciso olhar o cenário com cautela e objetividade.
De minha parte, espero ter esclarecido o que se refere ao setor de benefícios corporativos.