O papel invisível das mulheres na guerra: uma reflexão sobre as experiências femininas e o impacto psicológico revelado por Svetlana Aleksiévitch.
Colunista Mundo RH, Lilian Giorgi, sócia-diretora de recursos humanos na A&M
Em Atenas e Esparta, mulheres já lutavam. Na Primeira Guerra Mundial, inglesas foram aceitas na Força Aérea Real e, em vários países, atuavam em hospitais militares. Ainda assim, as versões que conhecemos das guerras são aquelas contadas por homens, nas quais as mulheres ficavam à espera dos heróis. Em A guerra não tem rosto de mulher, a bielorrussa Svetlana Aleksiévitch, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura em 2015, dá às mulheres o protagonismo.
Conheci esse livro por meio de Luis Daguer, diretor sênior da área de Disputas e Investigações da A&M, e ele me impactou profundamente do primeiro ao último capítulo. Terminei a leitura na semana passada e, desde então, não consigo pensar em outra coisa além do que li nesse livro.
Com mais de 200 testemunhos, o livro constrói um retrato da vida de mulheres soviéticas na Segunda Guerra Mundial, quando muitas assumiram papéis considerados masculinos, como o de franco-atiradoras ou o de condutoras de tanques. O conflito teve uma participação feminina sem precedentes.
“Cresçam, meninas… vocês ainda estão verdes…”, ouviam. No entanto, diante do avanço da guerra, os homens se viram obrigados não apenas a ceder espaço em territórios que dominavam, como também a reconhecer os feitos das mulheres na linha de frente. Criadas desde cedo para dar e manter a vida, elas aprendiam a tirá-la. As estratégias de combate ou os atos de heroísmo, contudo, não foram objeto de interesse de Svetlana, que queria saber o que essas mulheres pensavam e sentiam, do que tinham medo, como era viver sob a sombra da morte.
Lançado na URSS em 1985, durante a Perestroika, A guerra não tem rosto de mulher teve trechos censurados. O censor da época disse: “Depois de livros como esse, quem vai lutar na guerra? Você está humilhando a mulher com seu naturalismo primitivo”, relembra Svetlana na edição brasileira de 2016, que tem alguns dos trechos restituídos.
Terminada a guerra, resta o vazio para muitas delas. A esperança de que, ao fim da guerra, todos se amariam rapidamente se esvai. As terras perderam seus homens, as famílias estão desfeitas, e elas se sentem velhas. Muitos olham para elas com desconfiança, rotulando-as de “esposas de campanha”. Elas temiam que ninguém quisesse casar com elas, e os homens não as protegeram. A guerra terminara, mas para elas estava começando uma nova guerra. Os traumas que trouxeram da guerra ficaram e permanecem.
Termino transcrevendo algumas frases impactantes, sobre as quais só tenho a dizer: leiam-no. Não vão esquecê-lo.
- “Tenho pena dos que vão ler este livro e dos que não o vão ler…”
- “Eu tinha uma trança muito bonita; saí já sem ela… sem a trança… Cortaram-me o cabelo à soldado.”
- “E não me devolveram o vestido. Não me deram tempo de entregar o vestido e a trança à minha mãe. Ela pedira muito para ficar com alguma coisa minha.”
- “Mesmo que regresses viva de lá, a alma dói-te.”
- “Certa vez, durante os exercícios… Não consigo lembrar-me disso sem chorar, não sei porquê… Era primavera. Terminámos o exercício de tiro e regressávamos ao acampamento. Apanhei umas violetas. Um raminho pequeno, que atei à baioneta.”
- “Por que sobrevivi? Para quê? Penso… No meu entender, para poder contá-lo…”
- “Recordar é terrível, mas não recordar é mais terrível ainda.”
- “Depois da guerra, nunca mais voltei a ser jovem.”
- “Todos ansiavam chegar vivos ao dia da Vitória.”
- “Não enterro o meu marido, enterro o meu amor.”
- “Acho que, se não me tivesse apaixonado na guerra, não teria sobrevivido. O amor salvava. Salvou-me a mim.”
- “Na guerra, nunca sorria.”
- “Na altura da minha partida para a frente, as cerejeiras do nosso pomar estavam em flor.”
- “Será que é possível escrever sobre isto? Dantes não se podia…”
Svetlana Aleksiévitch faz com que as vozes dessas mulheres ressoem de forma angustiante e arrebatadora em memórias que evocam frio, fome, violência sexual e a sombra onipresente da morte.
Nascida em 1948, Svetlana Aleksiévitch é jornalista e escritora. Além de A guerra não tem rosto de mulher – sua estreia literária –, é autora de Vozes de Tchernóbil (1997) e O fim do homem soviético (2013), entre outros livros.