O recorde de doações que temos presenciado no Brasil é, sem dúvida, digno de celebração. Afinal, a casa dos 6 bi de reais, conforme o Monitor das Doações* da ABCR, é uma marca histórica. Na esteira dela temos nos deparado com narrativas que tentam nos convencer que o(a) brasileiro(a) é solidário, que faz doações regulares e que essa onda perdurará no pós-pandemia. Será?
O que, no entanto, tem faltado neste debate passa, a meu ver, por duas questões centrais: de onde vêm esses recursos e para onde ele vão? Uma análise mais atenta no Monitor das Doações e alguns dados nos saltam aos olhos. Destacarei um par deles, longe de esgotar o debate:
– mais de 80% da origem das doações provêm de empresas
– destas, mais de 50% vem do sistema financeiro, do setor de alimentos e bebidas, e da mineração.
Com estes dados fica mais evidente a origem da maior fatia deste recorde de doações, mas vale destacar que o Monitor elenca uma infinidade de empresas e de outros doadores, algo também digno de celebração.
A segunda pergunta que lancei no início do artigo questionava para onde estes recursos estão indo. Embora o Monitor não nos ofereça essas respostas, mas nos brinda com dados bastante importantes para diversas análises e reflexões sobre este fenômeno, devemos então buscar outras fontes para tentar encontrar pistas que nos indiquem para onde estes recursos estão sendo destinados.
Uma destas fontes é o Estudo inédito chamado ‘O impacto da Covi-19 nas organizações da sociedade civil brasileiras**’, do qual o Instituto Sabin é parceiro, que colheu dados de mais de 1.700 ONGs de todas as regiões brasileiras e concluiu que:
– mais de 73% delas afirmam que sofrem impactos negativos com a pandemia
– sendo que 65% delas já preveem redução na arrecadação de recursos para manter seus atendimentos
– e, pra piorar, 60% delas esperam que a demanda pelos seus atendimentos aumente por conta da crise que decorre da pandemia.
Em outras palavras, uma tempestade perfeita sobre as ONGs: aumento da sua demanda frente a queda na arrecadação de recursos.
Os dados deste Estudo combinados com nossa atuação direta no setor nos permite propor, pelo menos, três questões importantes na tentativa de fortalecermos este debate sobre a destinação destes recursos advindos deste recorde de doações:
- Estes recursos estariam, em grande parte, sendo destinados para cobrir os ‘furos’ de políticas públicas subfinanciadas? Com destaque para as áreas da saúde (SUS), assistência social e educação. Passada a pandemia, estas políticas seguirão subfinanciadas? Não seria necessário, portanto, rediscutir essa questão?
- Estes recursos têm chegado em organizações sociais menores, menos conhecidas e em todas as regiões e rincões deste país? Ou grande fatia destes recursos segue chegando a ONGs maiores e mais conhecidas?
- Estes recursos têm sido também direcionados para ajudar a cobrir custos fixos e institucionais destas organizações? Ou apenas para a compra de donativos, cestas básicas e insumos? Passada a pandemia, estas organizações sociais que atuam/atuaram na intermediação destes donativos estarão fortalecidas ou enfraquecidas? Conseguirão manter suas equipes, espaços físicos, estruturas?
Não é hora de ‘jogar a água do banho com a criança’, pois há boas apostas e bons desafios pela frente a partir desta onda solidária que estamos vivendo em nosso país. Continua me preocupando o descompasso entre a oferta e a demanda deste fluxo de doações. Convém também frisar que pode haver também doações como ‘cortinas de fumaça’ na tentativa de marcas e empresas forjar relevância para a sociedade.
Finalmente, se há um ponto com o qual todos concordamos é que a pandemia parece ter tornado diversas questões mais evidentes, dentre elas nossa cruel desigualdade social. Fica a reflexão se o recorde de doações poderá contribuir para enfrentar esse quadro, ou apenas amenizar seus graves sintomas. A conferir.
*Monitor das Doações:
https://www.monitordasdoacoes.org.br/
* Para acessar o sumário executivo do estudo:
https://mailchi.mp/mobilizaconsultoria/covid19
Fábio Deboni é Engenheiro Agrônomo e mestre em recursos florestais pela ESALQ/USP. Atua como Gerente-executivo do Instituto Sabin (desde 2011) e faz parte do Conselho do Gife (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas). É autor dos livros “Reflexões contemporâneas sobre Investimento Social Privado”, “Impacto na Encruzilhada”.
Atuou durante 8 anos no governo federal, em diversos ministérios, no campo de participação social na concepção e implementação de Conferências Nacionais e de Conselhos de políticas públicas nas áreas de meio ambiente, juventude, segurança pública, educação ambiental. Participa ativamente do engajamento de institutos e fundações no campo das finanças sociais e negócios de impacto, e também impulsionando a agenda da inovação social junto ao terceiro setor.