Repensando a tecnologia: do par de meias ao software corporativo
Heloísa Ramos é executiva com 15 anos de experiência em Gente & Gestão e ESG. Finalista do prêmio RH Mais Admirados do Brasil pelo Grupo Gestão RH; Colunista do Mundo RH; palestrante; co-autora do livro Mulheres do RH 2023 pela editora Leader; mentora voluntária de carreira para mulheres da ABRH, IVG e ONG Cruzando Histórias e madrinha do Instituto Amor em Mechas.
A tecnologia está em tudo que realizamos, um exemplo simples que gosto de mencionar são, roupas e calçados. Ambos são uma categoria de tecnologia muito antigos, mudam com as tendências da moda nos intervalos de estações, culturas, profissões, tempo cronológico etc., porém, invariavelmente preservam seus poderosos recursos: 1) nos proteger 2) ser um integrador social.
O fogo, o garfo, o papel e outros materiais da nossa rotina que nem ao menos usam pilhas, também são tecnologia. Ao reconhecer a amplitude do que nomeamos como sendo esse recurso, podemos concluir que independente do mercado de atuação, toda e qualquer empresa é de tecnologia.
Pensar dessa forma muitas vezes ainda não parece ser tão intuitivo, porque geralmente atribuímos a tecnologia aos equipamentos com placas ou interligados a nuvens. Repensar a postura que adotamos a esse respeito, é romper padrões de fases instauradas em períodos oriundos do pré-vestibular, que classifica os saberes e as atuações em diferentes subgrupos, e de uma forma “inconsciente”, nos isenta a possibilidade de também ter domínio sobre eles.
Para facilitar a compreensão, exemplifico com a crença de que um profissional de humanas pode se abster de conhecer de contabilidade. Isso é um enorme risco, pois desconsidera a necessidade futura dele atuar com temas financeiros para fins de orçamento pessoal e profissional. Infelizmente na mesma rota de pensamento, temos a frases: “… ele é muito bom tecnicamente, mas, como todo cara de TI, não é muito bom de relacionamento!”.
Reforçar viesses como estes, pode estagnar e retrair a evolução de carreira de qualquer pessoa, reduzindo um bom profissional somente aos 10% de conhecimento técnico oriundo de diplomas, contrariando a pirâmide do saber, que nos direciona a efetividade do aprendizado por meio de outros 20% de trocas (exemplo: coaching, pares, observar, …) e 70% de aprendizado prático.
Ampliar essa perspectiva é útil para qualquer profissional, independente da sua área de atuação, é fundamental não se limitar ao meio de formação educacional como algo fixo na sua carreira.
Aos colegas de RH, é igualmente importante não se limitarem a compreender que esse não é um papel esperado pela nossa área ou considerar as limitações orçamentárias para só depois iniciar. Considere primeira a transformação cultural para depois a transformação digital. Na prática, ela pode ser até mais simples do que você imagina. Nesse contexto, recomendo que se apoie no Manifesto Ágil, oriundo da diretoria de TI, mas que sofreu em 2017 uma importante adaptação para o RH, www.agilehrmanifesto.org, nele destacam:
Mais | Menos |
Redes Colaborativas | Estruturas hierárquicas |
Transparências | Sigilo |
Adaptabilidade | Prescrição |
Inspiração e engajamento | Gestão e retenção |
Motivação intrínseca | Recompensas extrínsecas |
Ambição | Obrigação |
Adotar a metodologia ágil é ter métodos e uma linguagem aderente ao momento de mercado, reposicionando o RH como relevante estrategicamente para as pessoas e para os negócios. Exemplos práticos de como exercer as mudanças culturais dentro nas atividades do RH:
Redes Colaborativas e menos Hierarquia: Repensar a estrutura hierárquica e estimular ambientes de atuação multifuncionais, adotando tomadas de decisões mais colaborativas e fluídas. A formação de redes colaborativas, pode inclusive ser inserida na concepção pela busca do novo profissional em um novo processo seletivo, desde a discussão e construção do perfil, até as etapas de avaliação e validação do candidato, com a participação não somente de um líder, mas dos pares.
Transparência menos Sigilo: Nas entrevistas de offboarding, colaboradores reportam sua insatisfação com a ausência de feedbacks e diretrizes da cia. Do outro lado, líderes explicitam desconforto com a falta de protagonismo dos times, o famoso “falta senso de dono”. Inserir o manifesto ágil e as metodologias nos programas de RH, é revalidar a necessidade e compromisso de implantar e executar em intervalos de curta duração processos de avaliação e feedbacks, bem como evidenciar as diretrizes de OKRs da cia e a contribuição esperada de cada profissional dentro desse indicador.
Menciono que implantar processos de transparência, é repercutir no cuidado com a saúde mental dos colaboradores. A comunicação respeitosa e transparente, desata ruídos de comunicação dos corredores (ainda que virtuais), evita conflitos intra e interpessoais, e julgo a acreditar que mitiga quadros de ansiedade, que surgem muitas vezes pela ausência de conhecimento.
Adaptabilidade x Prescrição: Adaptação é o coração da mentalidade ágil. Esse tópico nos convida a repensar que se tudo for regra, sobrará pouco espaço para a criatividade e customização. Termos norteadores são importantes, mas o convite é para evitarmos a rigidez. Esse é um tópico que interliga muito com o de redes colaborativas, por considerar que soluções para situações diversas, requerem formatos cocriados e não de tamanho único.
Inspiração e engajamento e menos retenção: Nunca tive muito conforto com a adoção do termo retenção nas empresas. Sempre me remeteu a algo obrigatório, de ganho restrito e controlado. Concordo com o manifesto, tenho muito mais simpatia pela palavra inspiração. Nela o desafio é acessar o outro, compreender o desejo de se ter e de estar. Para se chegar a essa compreensão, é necessário disponibilidade de conhecimento e muita troca, para compreender qual a correspondência de valores “dá o match” entre profissional e cia, e pelos quais permanecerão conectados para além da carta oferta.
Nosso papel como RH é criar ambiência para promover com mais segurança esse encontro, pensando na experiência desde o momento do processo da seleção, do que podemos dispor no onboarding dos valores, na prática das rotinas, e principalmente, convidar os times para construírem a jornada, que se faz no caminho.
Motivação intrínseca x recompensas extrínsecas: Gosto muito de um teste, o Âncoras de Carreira. Ele norteia de maneira simples para qualquer leigo, quais são os três principais ganchos de um portfólio de oito opções (autonomia, segurança, competência técnica funcional, administrativa geral, criatividade empreendedora, dedicação a uma causa, desafio puro e estilo de vida), que mantém sua carreira fixa naquele momento da sua jornada profissional.
Como qualquer teste de preferências, não tem certo ou errado, ele se propõe a te ajudar a dialogar internamente com quais são os seus motivadores intrínsecos e extrínsecos.
Assim como o teste, acessar a pessoa, para além do profissional, ajuda a compreender o que o engancha ou não em uma relação.
A pesquisa, a Carreira dos Sonhos, promovida anualmente pela Cia de Talentos com mais de 170 mil respondentes em toda América Latina, pontua que o que faz uma pessoa se sentir apoiada pela liderança é, ser ouvida. Parece pouco, mas no período que estamos vivendo, na “economia da atenção”, constantemente bombardeados por informações de todos os lugares, parar para ouvir o outro, é gerar exclusividade, valorizar a identidade, um ato de respeito.
Se penso, sou ouvido, logo AQUI eu existo!
Ambição x obrigação: Na nossa cultura ambição é compreendido com algo escuso, herança inclusive herdada desde a colonização social e religiosa. No manifesto ágil do RH, ambição pode ser interpretada como algo a se perseguir. Excluir ao máximo da nossa frente, o “tenho que….”
Assim como no Manifesto Ágil de TI, os itens listados como menos também existem, mas se busca valorizar mentalmente e, na prática ações do mais, em uma busca para se construir pensamentos e atitudes inovadoras.
Antes de concluir, creio ser importante mencionar que os métodos ou frameworks como Kanban e Scrum, são excelentes parceiros para gestão e visibilidade coletiva, porém, mais do que recursos de apoio técnicos ou metodológicos, a transformação principal deve vir do nosso mindset, caso contrário nada do que se “importar” como tecnológico, disruptivo para processos de inovação e colaboração, funcionará dentro ou fora do RH.
Refletir a respeito da nossa relação com esse ecossistema, é, na verdade realizar novos uploads, só que agora de nós mesmos!